Mais Brasil, menos Brasília – Valor, 08 de novembro de 2018

Após a vitória sobre os ingleses na Guerra da Independência, as treze ex-colônias americanas e o governo central encontravam-se endividados e perto de não conseguirem honrar seus compromissos. Como na prática conviviam treze países soberanos, havia relevante dificuldade de coordenação fiscal e comercial. No todo, tratava-se de uma grande crise fiscal. E crises fiscais são comumente precursoras de revoluções.

Naquela vez, também não foi diferente. Um novo realinhamento de forças impulsionou o redesenho do poder político. Por meio da Constituição de 1787, os EUA foram criados e o governo federal passou a deter o poder de regular o comércio, estabelecer e arrecadar tarifas de importação e exportação e se financiar por meio da emissão de dívida (artigo 1º). A fim de tornar viável o acordo, a União nacionalizou a dívida estadual. Esta foi a grande barganha fiscal na origem da Constituição.

Os “founding fathers” criaram dois tipos de reputação. Por um lado, ao honrar seus compromissos fiscais, os EUA angariavam a credibilidade necessária junto aos credores que permitiria levantar vultosos recursos em caso de necessidade. Por outro, menos nobre, estimulava a perspectiva de que, frente a novas dificuldades financeiras, o governo federal iria salvar os Estados.

Algumas décadas depois, uma parcela relevante dos Estados começou a emitir novas dívidas para financiar gastos em infraestrutura. Em 1837, uma intensa depressão econômica se iniciou e uma de suas consequências foi a dificuldade dos Estados mais endividados de honrarem seus compromissos. Novamente, a questão de socorrer os Estados se impôs.

Em um momento crucial do federalismo americano, o Congresso decidiu por não realizar um novo resgate. Entendeu-se que o primeiro resgate ocorreu devido a uma grande causa nacional, que permitiu a própria existência dos EUA. Neste novo caso, a dívida havia sido contraída para benefício local.

Como consequência, uma série de Estados deixou de honrar seus compromissos em 1842. Nos anos que se seguiram, os Estados introduziram reformas estabelecendo o equilíbrio orçamentário. Desta forma, uma nova reputação foi moldada: a União não mais resgataria os Estados. Desde então, poucos casos foram registrados de inadimplência da dívida estadual, sendo o Arkansas o último em 1933.

Desde o início da República, as particularidades do sistema federativo brasileiro criaram um campo fértil para que a União sistematicamente socorresse os Estados. Nesta direção, a Constituição de 1988 não teve como característica o desenho sustentável do pacto federativo fiscal. Tratava-se de consequência natural que, após o período de repressão, os direitos fundamentais assumissem papel preponderante na ordem de prioridades dos constituintes.

Dessa forma, apenas na década de 90, quatro renegociações de dívidas de governos subnacionais ocorreram. O socorro da União aos Estados naquele período pode ser entendido como um acordo nacional, cujo benefício para os Estados foi a redução dos custos da dívida, mas com redução da autonomia em diversas áreas. Para o país, garantiu-se a estabilização macroeconômica.

Porém, observa-se que o redesenho da relação federativa no Brasil ocorreu de forma oposta quando comparada aos EUA. Neste, priorizou-se a autonomia dos governos subnacionais. Quando um governo subnacional é visto como autônomo, credores, investidores e eleitores possuem incentivo de monitorar o desempenho fiscal. Em caso de má condução, credores exigem juros maiores, investidores retiram o capital e eleitores, o voto. Sabendo das consequências, os governos estaduais têm o incentivo de adotarem políticas sustentáveis.

No Brasil, reduziu-se a autonomia dos Estados com receio de que recursos da União fossem comprometidos em resgates futuros. A nova crise fiscal dos Estados mostra a falência desta estratégia. O problema perdura, pois a União permanece como o maior credor, os vasos comunicantes de recursos subsistem e, na ausência de mecanismos legais que facilitem a reestruturação, os Estados buscam “passar a conta para o andar de cima” por meio da força política.

O novo governo receberá diversos pedidos de socorro. Se seguir a recente lei de recuperação dos Estados, a negociação ocorrerá de forma individual e sem benefícios para o país. Simplesmente transferir-se-á recursos da União para os Estados. Porém, se a União negociar com o conjunto dos Estados, um novo redesenho federativo é possível (inclusive tributário).

“Mais Brasil, menos Brasília” não deve significar apenas uma parcela do bolo tributário maior aos Estados e municípios. Em troca de atender os pedidos de renegociação das dívidas, a União deveria repensar a federação com base no modelo americano. Isto significa, por um lado, não mais financiar os Estados, inclusive por meio de garantias e bancos públicos. Por outro, conferir-lhes liberdade ampla em questões orçamentárias, financeiras e administrativas (inclusive de pessoal) de forma que estes possam fazer os ajustes necessários por conta própria em caso de nova crise.

Neste momento, o poder de barganha está com a União.

André Senna Duarte é economista-chefe da Truxt Investimentos